A
Família Schroffenstein é um pouco como um conto. Contam-nos uma história
passada noutros tempos, os tempos antigos de uma brumosa Idade Média de
castelos, grutas e florestas, cavaleiros em cota de malha, guerras e
caçadas. O palco é aqui um processo de escrita para que surjam figuras
de um mundo imaginário, e vai-nos transportando de local para local da
acção como quem passa as páginas de uma narrativa. Há elipses, como no
cinema, cenas que não vemos, que às vezes nem nos são contadas e apenas
deduzimos, mas é um tempo de narrativa que parece estar no palco e nos
vai levando com as personagens dentro do seu mundo até a um desfecho.
Não é um tempo de exposição do actor. Pelo menos não parece ser.
Jerónimo, um honrado cavaleiro de Wyk, chega ao castelo de Rossitz, casa
de Roberto, seu primo, vindo de outro castelo, o de Warwand, casa de
Silvestre, o outro ramo da mesma família, onde pretende a mão de sua
filha Inês. Ambas as casas estão enlutadas, aos dois lados lhes morreu
um filho. Mas quando Jerónimo chega à igreja de Rossitz, a meio da missa
de corpo presente, assiste a um macabro juramento de vingança: Rossitz
pensa que Warwand lhes matou o menino e quer destruir Warwand. Jerónimo
fica a saber porquê. Existe um contrato entre Rossitz e Warwand, que, em
caso de quebra da descendência, cederia ao outro lado o dinheiro e o
poder. Rossitz desconfia que Warwand lhe quer destruir a descendência. A
vontade de ter e de mandar a isso levaria. Jerónimo convence-se de que a
hipótese é possível e a partir daí viajará de Rossitz para Warwand e de
Warwand para Rossitz, primeiro do lado de Rossitz , depois de Warwand,
sofrendo com a divisão da família, tentando ser justo e saber de que
lado está a verdade, ora acusando ora defendendo uns e outros, perdido
como nós e as outras personagens, nas teias de uma intrincada série de
episódios: declaração de guerra a Warwand e assassinato pelo povo do seu
emissário, suspeita de tentativa de assassinato de Inês, tentativa
gorada de reconciliação da parte de Warwand, até ao linchamento em
Rossitz do próprio Jerónimo, transformado, por bem, em emissário de
Warwand. A vingança passa então para o outro lado, onde também se
desconfia que o seu próprio herdeiro terá sido assassinado por Rossitz,
e é Warwand quem agora se arma para destruir Rossitz. Acontece que, à
margem destas guerras, os dois jovens filhos de cada um dos lados, Inês
de Warwand e Otto de Rossitz, se amam e se encontram numa gruta da
montanha. Puros como são, descobrem o absurdo de um conflito que apenas
se baseia em infundadas desconfianças. Projectam a união das duas casas.
Mas já as famílias os perseguem e acabam por encontrá-los. São
assassinados pelos seus próprios pais, pensando cada um deles que está a
matar o filho do outro. Há gente inocente, duas camponesas, mãe e filha,
que vêm revelar que tudo se passou por engano: nenhum dos lados tinha
morto o menino do outro. Mas é tarde demais e a reconciliação que se
segue será por certo de pouca dura. Nenhum dos lados tem agora
descendentes, o contrato tornou-se absurdo, mas a desconfiança já minou
as almas. Há um bastardo de Rossitz, João, alheio a questões de
descendência, que também ama. Ama Inês e ama Otto, o seu meio irmão.
Tenta matar-se. Esse enlouquecerá de desgosto num mundo onde não tem
lugar.
É mais
ou menos assim a história que esta peça conta. O primeiro desafio era
fazer do palco e dos actores um instrumento para a contar. Tentámos. Mas
o palco é sempre palco e cedo descobrimos que este teatro não se fica
por aí. Se se trata de contar uma história, para quê tanta conversa?
Para quê esta infindável sucessão de cenas de teatro em que as
personagens se debatem até à exaustão na exegese da sua própria intriga?
Para quê tanta palavra, tanto meandro de tanto desentendimento, para quê
tantos enganos? Fomo-nos apercebendo de que este teatro está mais longe
do que parece da literatura e que não é tanto assim um teatro de
narrativa. A sua estrutura é mais complexa. Há uma história, sim, que é
preciso entender, mas sobre esse "conto" constrói-se mesmo um "teatro".
Na sua sequência narrativa abrem-se constantemente, momento a momento,
"caixas" de problematização. O tempo da narração é constantemente
interrompido e adiado, a ponto de chegarmos a pensar que afinal nada se
passa. A acção deduz-se ou pressupõe-se, pouco se passa à vista do
público. Os acontecimentos em cena são de outra natureza, são confrontos
interiores e decisões. Em cena as personagens falam, falam muito,
parecem dialogar, dizem pelo menos muitas palavras, trocam infindáveis
argumentos, ferem-se, agridem-se e agridem os outros, expõem-se nas suas
relações, nos seus sentimentos, na complexidade das contradições do seu
pensamento, na sua afinal fragilidade. Cena a cena, o teatro vai-se
tornando na revelação das consciências. A intriga é um artifício sobre o
qual se instala um outro teatro, um teatro interior. Idade Média,
castelos, grutas e florestas, tudo fancaria. O que é verdade é outra
coisa, é o teatro das almas. Sentimo-nos perto de Strindberg. E foi por
esse lado que este teatro nos interessou e nos ligou ao nosso tempo.
Mais do que narrar, este teatro retrata ou analisa. E torna-se poesia. A
Família Schroffenstein não é um conto. A Família Schroffenstein é em
cena a metáfora do mundo, é a sociedade humana. De estrutura à vista:
como no mundo, há senhores e vassalos, há gente que manda e gente que
obedece. E manda mais a gente que obedece, porque não pensa, só diz o
pensamento que os senhores nem ousam dizer e desencadeia a acção sem a
má consciência que os senhores escondem. Este teatro também é mesa de
anatomia. Escalpelizam-se as consciências de um mundo às avessas da
natureza humana. Mostra um mundo doente, gerando a sua própria extinção.
A peça abre assim, Roberto de Schroffenstein o diz na igreja diante da
hóstia e de um cadáver: o mundo anda às avessas, o homem trocou a sua
natureza generosa pela das feras. Ao longo dos cinco actos vamos ver
como, e vamos, se quisermos, talvez saber porquê. Cada cena é uma
variante sobre a desconfiança, desconfiança que destrói a inocência
original, mina o pensamento, leva ao ódio e o ódio leva à guerra e a
guerra traz a morte. A justiça é um absurdo.
O homem é bom mas a sociedade gera o equívoco. E as palavras que o homem
inventou para viver com os outros transportam a doença, adoecem mais,
traem a inocência. A poética deste texto é a exposição deste mal. Tanto,
que o seu porquê, como na sociedade dos homens, parece esquecido ou
escondido atrás da história: o mal nasceu com um contrato, com as regras
do "bom viver", da boa consciência para a posse e para o poder. O mal
vem do dinheiro e da própria estrutura social, transformada em
linguagem. A Família Schroffenstein é a exposição desta trágica
condição, a condição humana. E o destino é a própria humanidade. No
centro da tragédia, as vítimas, os jovens, o futuro: Inês e Otto que
ainda não estão doentes, amam-se, desejam-se, tentam ainda a impossível
generosidade, esbracejam na teia, não podem viver. João, que também ama,
só tem como lugar a margem, a lucidez dos loucos.
Foi o
retrato desta doença que nos interessou, cansados como andamos de uma
sociedade tão doente como a nossa, de um mundo tão mesquinho. Comove-nos
o sonho de uma generosidade original, matriz do homem, que os românticos
pensaram, e comove-nos a alma dos actores que, contra ventos e marés,
ainda a conseguem representar. Dêem ao teatro esse espaço de desejo.
Mais difícil do que isso, felizmente, foi o desenho das almas em
permanente contradição, a fria representação de vidas dilaceradas por
tantas zonas de consciência, traídas pelo que dizem e pela maneira como
ouvem, incapazes de alguma felicidade, de alguma vida em comum, o nosso
retrato.
Difícil também encenar o amargo humor que atravessa esta tragédia.
Tirar-lhe a piedade. Tentámos descarnar a ficção em cenários de
brinquedo, vestir a Idade Média com fatos de convenção e espadas de
madeira, distanciar a história com a criação de uma ou outra imagem
nascida de figurações antigas, tornar a aparência de ficção nisso mesmo,
apenas aparência. Mas a subtil passagem de um retrato que se faz no
teatro com a exposição de actores que reconstituem de corpo presente os
movimentos de alma, à ironia sobre a própria escrita teatral, não sei
como se faz. A partir do momento em que tudo está jogado e se caminha
para a solução das tensões, quando Otto tenta descobrir a história do
dedo mindinho cortado no cadáver do seu irmão morto (há história mais
inverosímil, mais grotesca?) e encontra, longe da sociedade, perdidos
nalguma casa de camponeses, dois seres de fantasia, Úrsula e Barnabé,
tudo parece mais falso que nunca. A intriga progride a outra velocidade,
voltamos à narrativa, minada agora pelo humor. O teatro expõe a sua
própria falsidade. A catástrofe transforma-se em comédia. Ou em trágica
comédia. O último acto na gruta desfigura a tragédia metendo-a nos
lugares comuns da cómica convenção. As mortes são trágicas, a catástrofe
lá está, tal como antes, em pano de fundo, tinha estado se calhar também
o coro, coro grotesco, de sabedoria invertida na voz surda de um ou
outro representante do povo insensato ou dos "confidentes" de cada um
dos lados. Mas essas mortes tornam-se risíveis, geram-se miseravelmente
por engano na noite de convenção dos fins de comédia em que os enganos
se revelam: luzes na noite, trocas de identidades, grande final onde
todos se encontram. Reconciliação. Falsa como o teatro. A anatomia passa
a mascarada, o teatro mostra o artifício. E quando Úrsula, viúva dum
coveiro, bruxa aos olhos dos outros, processo de teatro e deus ex
machina, aparece no fim para fazer um rasgão no céu de papel, é o
próprio teatro em cena que troça, como a morte, dos conflitos dos
humanos. Esta ironia não sei como se encena. Entrego-a a uma grande
actriz.
Não é afinal uma história antiga. Este teatro é o desespero e anuncia o
nosso tempo. E com o seu fato de bobo acusa o mundo. Acusa Deus?
Luis
Miguel Cintra
|